segunda-feira, fevereiro 28, 2005

No Fundo do Copo

Saía muitas vezes para dançar com amigos, mas na maioria das noites ia sozinha. Não ia com nenhum intuito em especial, para além de dançar. Mas adorava mexer o corpo ao ritmo de música bem alta, rodeada duma massa de gente toda diferente, que se toca e se movimenta ao mesmo ritmo.
Por vezes bebia bastante, para anestesiar a mente, libertar o corpo, esquecer um pouco a vida que lhe tinham distribuído e que não a fazia feliz.
De vez em quando partilhava a solidão com outro amante do ritmo, solitário como ela. Dançavam os dois na pista, embalados pela música alta, que penetrava a pele e sossegava o corpo. Beijavam-se, tocavam-se, mas permaneciam isolados, defendidos pelo fundo de um copo sempre cheio.
Numa noite deixou de aguentar. O coração doía-lhe, a alma piscava-lhe de ansiedade, o corpo pedia uma atenção que ela não se podia permitir dar. Nem a sucessão de copos cheios que já lhe tinham passado pela mão, a uma velocidade assustadora, pareciam acalmar a ânsia que a inundava, e a música aos berros já não abafava a voz que gritava dentro da sua cabeça a infelicidade. A dança frenética que costumava ser um bálsamo, era agora dolorosa.
Olhou em volta, sem saber o que fazer. No chão amontoavam-se pedaços de vidro, restos de copos que tinham escorregado de outras mãos, e que dificultavam agora os seus passos. Baixou-se vagarosamente, com movimentos lentos impulsionados pelo álcool, e agarrou o pedaço de vidro mais colorido. Acariciou as palmas das mãos com ele, os pulsos, cada dedo amaciado pela bebida, e pelos inúmeros cremes com que se mimava todas as manhãs. Cortou a carne mole, como se não lhe pertencesse, sentiu o sangue escorrer devagar, quente, e a dor que lhe perfurava os dedos abafava a dor do coração.
E dançou o resto da noite, tingida de vermelho, com a dor que lhe invadia a alma espelhada nas suas mãos, e um sorriso de alienação a coroar-lhe o rosto.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Pausa até ao final da semana

Estou cansada.
Estou deprimida.
Não me apetece escrever.
Vou estar de greve até ao final da semana.
A emissão segue dentro de momentos.

sábado, fevereiro 19, 2005

Convite de Fim de Semana

Sentaste-te naquela cadeira de baloiço que enfeitava a nossa sala há tanto tempo, virado para a televisão, manta à volta das pernas. Eu estava no sofá grande, pernas esticadas, cobertor por cima e aquecedor bem perto, tentando enganar o frio cortante do inverno. Tínhamos as mãos entrelaçadas como fazíamos nos tempos de namoro, quando todos os minutos eram poucos para nos tocarmos. Estava a dar um filme sem graça, daqueles de domingo à noite, mas que mantinha os olhos entretidos e o cérebro descansado.
Os teus dedos acariciavam os meus, e as nossas mãos moviam-se ao ritmo do balanço da cadeira. Os teus dedos desenharam o percurso até ao meu pulso, à volta dele, subiram pelo meu braço até ao cotovelo. Desviei os olhos da televisão para olhar o teu rosto que já conheço de cor, e encontrei nele o sorriso de menino maroto que sempre me encanta.
Tirei-te a manta das pernas, e apertei os músculos fortes que revestem as tuas coxas. Passeei a palma da minha mão aberta pelas tuas pernas, apertando de vez em quando, procurando uma abertura no teu pijama por onde pudesse tocar a tua pele. Agarraste-me a mão, fizeste-me levantar e puxaste-me para ti. Sentei-me ao teu colo, e deixei o teu tronco nu, beijando e saboreando cada centímetro de pele.
Balançámos nos braços um do outro como duas crianças que se aprendem, e adormecemos embalados e cheios de amor.

terça-feira, fevereiro 15, 2005

O Táxi

Já era tarde, estava cansada, e resolveu que o melhor era mesmo apanhar um táxi. Precisava de descansar, porque no dia seguinte, apesar de ser sábado, tinha ainda que trabalhar. Entrou meio esbaforida, cheia de sacos, com um ar desgrenhado de quem tinha passado o dia a correr.
“Para a minha rua, por favor.” Arranjou os sacos no banco, sentou-se melhor, e recostou-se, respirando fundo. Finalmente uns minutos de descanso, a olhar para a passagem dos candeeiros da rua. Gostava de observar o movimento dos carros, enquanto se embalava com as mensagens o rádio táxi.
Estava longe, perdida nas suas comédias românticas internas, quando pararam num semáforo. Sentiu um olhar penetrante através do retrovisor, e não foi capaz de o retribuir. Era um olhar bonito, prescrutante e intenso, como o dela própria. Não aguentou e voltou a olhar para as movimentações automobilísticas do lado de fora da janela.
Mas os seus olhos eram atraídos para aquele espelho, como se fosse um íman. E foram assim, trocando sorrisos e olhares profundos. Não se sentia incomodada, apesar de ser uma pessoa que não gostava de interacções indesejadas, sempre preferira passar despercebida no seu canto.
Estava a chegar o fim da viagem, e de repente desejou que ele não parasse, que seguisse sem destino, às voltas pela cidade, olhando-a com olhos de desejo, sentindo-se bonita no reflexo que não era visível naquele espelho. Desejou que ele seguisse sempre em frente, sem rumo, saísse das portas da cidade, estrada fora, sempre a olhá-la. Desejou ser amada assim, no fundo daquelas retinas que a fixavam, sempre em movimento, felizes para sempre numa realidade paralela.
“São 4.50€.”
“Fique com o troco. Obrigada e bom fim de semana.”

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Porque não quero deixar passar esta efeméride

Eu não sou grande adepta de referir no meu blog as datas que se celebram a torto e a direito por aí. Por um lado, porque eu própria não sou muito de as comemorar, depois porque acho que elas já são debatidas nos outros blogs, não trazendo eu nada de novo à discussão.
No entanto, este dia 14 é duplamente importante. Primeiro, porque a minha Rutinha, a minha afilhada mais velha faz 4 aninhos hoje.
Segundo, e não menos importante, porque dia 14 celebra-se uma data especial para todos os que têm coração. É o Dia Nacional do Doente Coronário, como tão bem lembra a Fundação Portuguesa de Cardiologia. Por isso, neste dia lembrem-se do vosso coração, e do que podem fazer para zelar por ele.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Noites Cinéfilas

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Algures numa noite desta semana, e sob falsos pretextos, arrastei um amigo para o cinema. Prometi-lhe que lhe pagava o bilhete, e tal, e depois, lá chegada, atraiçoei-o vilmente, já que a porcaria dos cinemas das Twin Towers não são da Lusomundo, apesar de venderem pipocas. Mas fomos ver Um Longo Domingo de Noivado, com a "Amélie", e aconselho vivamente. O filme é muito bonito, fala de desespero e esperança, de como o destino é deliciosamente sádico. Uma humor trágico, e uma mini-aparição da Jodie Foster lá pelo meio. Requer bastante atenção, para não nos escapar nada, porque a teia está bem construida, e rica em pormenores.
Um verdadeiro Convite de Fim-de-Semana.

terça-feira, fevereiro 08, 2005

A Última Viagem

Chegar ao Céu é difícil. É uma longa caminhada por aí acima, sempre a subir de nuvem em nuvem. Já morri há mais de quinze dias e ainda não consegui lá chegar. Também nunca fui conhecida pelo meu sentido de orientação, e isto ainda está pior sinalizado que as ruas de Lisboa. Já parei umas 5 vezes para pedir indicações, mas os senhores dos aviões não foram muito simpáticos. E acho mesmo que um deles foi bastante desagradável e não estava a ser correcto quando me indicou o caminho para a Rua do Pariu. Pelo menos foi isso que me pareceu.
Mas continuo em plena subida, e aqui em cima faz muito frio. Devia ter trazido uns agasalhos, mas as agências funerárias estão cada vez pior, nem sequer têm umas brochuras a indicar as vacinas que devemos levar, e cuidados a ter na última viagem. E as nuvens também não são tão confortáveis como se apregoa por aí. Experimentem dormir numa sem saco cama, e depois digam-me como se sentiram. Eu ando com uma dor nas cruzes que já não me aguento. E, claro está, que isso também me atrasa na subida. Ainda ontem fui miseravelmente ultrapassada por uma miúda de 15 anos que tinha morrido há menos de dois dias. Ainda tentei acompanhar os passos dela, mas já deitava os bofes pela boca e tive de parar para descansar. Bem me parecia que não devia ter comido tanta fast-food, e que devia ter perdido aqueles quilinhos que o médico aconselhou.
Mas agora é tarde para pensar nisso, é melhor é ir preparando um discurso comovente para dar ao São Pedro, senão cheira-me que ainda perco as gordurinhas numa sauna eterna.

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

... e ainda o Carnaval.

E porque raio de cargas de água (no sentido literal) é que temos de ser inundados com desfiles cheios de moças semi-nuas a dançar samba, quando as nossas temperaturas convidam a lareira e botas de pelo?
Eu não sou estudiosa do assunto, mas teremos com certeza no nosso país tradições carnavalescas próprias, que poderiam ser desenvolvidas, à semelhança do que fez Veneza, em vez de importar tradições desadequadas ao nosso clima.
Enfim, mas aos fãs das meninas semi-nuas, podem atribuir este devaneio à minha eterna rabujice carnavalesca/sãovalentinesca/aniversariesca, e outras coisas terminadas em ... esca, como vinho e aguardente.

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Máscaras

Eu detesto Carnaval. Quando era pequena a minha mãe mascarava-me de espanhola, saloia e de madeirense. O meu irmão, anos mais tarde, ainda usou o meu fato de saloia, enquanto era pequeno demais para poder reclamar. Aliás, no preciso momento em que estou a escrever estas palavras, estou a comentar isto com a minha mãe, que me diz "Eras tão engraçadinha...". É bom saber que já não sou...
Mas íamos passear para o Jardim Zoológico, onde o meu avô trabalhou 49 anos e toda a gente me conhecia de cor, até os animais. Tirámos kilos de fotos que ainda recordamos hoje.
Anos mais tarde, já com 19 anos, ainda fiz uma noite temática em que me mascarei de bruxa a rigor, com direito a vassoura de palhinha e tudo. E procurei em Benfica inteira até achar a ideal.
Mas hoje em dia Carnaval significa essencialmente não poder andar nas ruas à vontade, ter balões de água, ovos e bombas de mau cheiro por todo o lado. É exteriorizar as máscaras que andam por dentro no resto do ano. Parece uma desculpa para a irresponsabilidade.
Por isso prefiro passar pacatamente estes dias em casa, sossegada, no quente. Longe dos ovos, a não ser se forem no prato, mexidos.
Bom Carnaval!

terça-feira, fevereiro 01, 2005

No Circo

“És tão engraçada! Conta lá mais uma história das tuas.” E ela contou, mais uma das suas histórias divertidas, que entretinham toda a gente à sua volta, e os mantinha sempre a sorrir.
“Vejam, ouçam os meus relatos cómicos, riam-se comigo. Assim não percebem que eu estou aterrorizada, que vocês me assustam, que morro de medo que vocês me agridam. Eu sei que não passo despercebida, que me vão ver entrar, estar e falar. Por isso ataco primeiro, falo, rio, monopolizo as atenções. Ridicularizo os meus pontos fracos, para não serem vocês a fazê-lo. Choro por dentro, enquanto as lágrimas de riso vos enchem os olhos. Sou sarcástica, ácida, venenosa. Porque sou imune ao meu veneno, não me mata como o vosso.”
Mais uma vez contou as suas peripécias dum modo irresistível, inundou a mesa de risos, agiu como a boa companhia porque é conhecida. Não desiludiu quem ia de propósito para a ver actuar, nem aqueles que a levaram para mostrar, esteve à altura de toda a situação.
Chegou a casa com a sensação de dever cumprido, sentou-se na cama, retirou as pinturas, o nariz vermelho, e chorou.