sexta-feira, novembro 04, 2005

Melancolia

Detestava dias de chuva. Nesses dias vinha sentar-se à janela da sala, observando as pessoas que, como formigas trabalhadoras, iam e vinham pelos seus carreiros, lutando desesperadamente com o vento, tentando manter abertos os guarda-chuvas, e ao mesmo tempo alguma dignidade e roupas secas. Recordava com melancolia os dias de outrora, em que fora ele próprio uma obreira atarefada, tentando prover a sua família com todas as comodidades.
Agora sentia-se mais um fardo, principalmente nestes dias cinzentos, em que necessitava que lhe trouxessem o almoço, em que precisava que cuidassem dele, como um dia ele tinha cuidado dos seus. Detestava a chuva que caía lá fora, símbolo da sua própria inadequação, dos dias cinzentos em que a sua vida se tornara.
Nos dias de sol tudo era diferente. Levantava-se de manhã com um sorriso nos lábios, a temperar as dores que sentia em todas as articulações, que por hábito acordavam bem mais tarde que o seu cérebro ainda bem activo. Andava devagar pela casa, fazendo as actividades diárias ao seu ritmo, lento e exasperante, mas que eram rotinas que o mantinham vivo.
Depois de almoço saía de casa, com passos lentos e arrastados, até ao jardim do seu bairro, onde uns bancos de madeira, e uma mesa de ferro esperavam invariavelmente por ele todas as tardes. Levava os bolsos cheios com as armas que usava na luta contra o tédio. Um baralho de cartas, um jogo de damas em miniatura, consoante o número de parceiros que tivesse conseguido sair de casa nesse dia.
Sentavam-se juntos, jogando cartas, maldizendo a vida, os ossos quebradiços, o coração que que está lento, pesado de memórias duma vida preenchida. Ao fim da tarde um copo de vinho na tasca do Sr. João, que sempre ajuda a manter as juntas afinadas, e os travões bem oleados. Compra-se o jornal no quiosque da esquina, que a noite sem sono ainda é longa para quem não gosta de ver as novelas da praxe.
Por isso gosta do sol, dos dias com companhia, com quem partilha as gracinhas dos netos e o sucesso dos filhos. Gosta dos cães abandonados que o trazem a casa, dos amigos com quem discute a bola e política há tantos anos, e ainda nunca se conseguiram entender.
Detesta dias de chuva, com cheiro a mofo, a camisola velha arrumada na prateleira, a morte no seu caminho.