segunda-feira, setembro 19, 2005

Casulo

Era um bocadinho germofóbica, e essa caracteristica tinha vindo a acentuar-se com o passar lento dos anos. Era um mulher nova ainda, mas há certos tiques que se vão tornando traços fortes de personalidade, quando ignorados e deixados a hibernar numa mente demasiado activa, e a sua mania das limpezas começava agora a ultrapassar as marcas.
Lavava meticulosamente as mãos enquanto entoava duas vezes o “Parabéns a Você”, como tinha visto um médico aconselhar no Jay Leno, numa das noites sem sono que povoavam a sua vida. Desinfectava todos os alimentos com umas gotas de lixivia, as roupas eram todas engomadas a altas temperaturas de modo a matar qualquer habitante indesejável.
Mas por mais que se esfregasse sentia-se sempre suja, como se a imundície da alma transbordasse, e fosse visível para todos os que a rodeavam. Tinha loucas tardes de sexo com completos desconhecidos, apenas para ter o que contar. Entregava-se de corpo, mas nunca de alma. Sujava-se com o suor e o sémen de homens que a desejavam, mas que jamais a conheceriam. Deixava que a usassem, que se satisfizessem nela.
Naquela tarde foi ter com ele ao seu apartamento, na morada que já conhecia de cor. Entrou, trocaram um cumprimento seco, e dirigiu-se logo ao quartinho dos fundos, única divisão da casa que conhecia. Despiu-se mecanicamente, pousou cuidadosamente as roupas na cadeira encostada à parede. Despiu-o a ele, com o que poderia parecer desvelo e cuidados, mas na realidade fazia apenas parte da encenação costumeira. Pendurou as suas roupas no cabide, imaculadas, prontas a vestir novamente no final da função.
Tocou-o, percorreu-o, deixou-se inundar com os seus fluidos quentes e abundantes. Como sempre, ele satisfez-se enquanto ela entregava vigorosamente o seu corpo, mas com os pensamentos dispersos numa galáxia distante. Terminou como sempre, num sorriso sem climax, actriz principal do seu próprio enredo. Limpou-se na toalha que ele lhe estendeu com amor, beijou-o com os lábios sedentos de atenção, e povoados de bactérias nocivas. Vestiu-se como se fugisse do local dum crime hediondo, pegou nas suas coisas e saiu porta fora, deixando-o como sempre com um sorriso inacabado, com o olhar interrompido.
Voltou de transportes públicos, partilhando o seu cheiro a sexo com o mundo, como se quisesse que todos sentissem a sua falta de amor, o seu excesso físico. Voltou para casa, fez a sua vida de todos os dias, sempre com a presença dele dentro dela, particulas aromáticas libertando-se lentamente da sua pele já suada pelo calor do dia. Olhava em redor tentando perceber se quem se cruzava com ela conseguia perceber o seu cheiro a pecado, o seu sabor a mel.
Ao fim do dia dirigiu-se finalmente à casa da banho. Esfregou as mãos meticulosamente enquanto entoava a canção do costume, esfregou os braços, desinfectou os dentes, despiu-se, entrou na banheira, onde passou a hora seguinte mergulhada em água bem quente e espuma purificante. Saiu, muito depois, banhada, hidratada e perfumada, mulher de pele nova, casca reluzente e interior em decomposição.