segunda-feira, dezembro 26, 2005

Consoada

Voltou a cozinhar para dois, como sempre fazia. Detestava fazer a comida só para ela, tinha uma sensação de inutilidade. Cozinhar para duas pessoas dava-lhe a ilusão da companhia. Pôs a mesa a preceito, linda, com a toalha do Natal, o centro de mesa, as velas acesas. Não enfeitou a árvore, não seria necessário. Preferia o Presépio, verdadeiro símbolo da quadra, e que lhe preenchia o coração.
Jantou calmamente o bacalhau, as batatas e as couves. Tinha tirado o telefone do descanso para fazer a sua refeição em paz. Sabia que teria os telefonemas preocupados dos familiares a quem recusara os convites. Não queria ser o prato a mais nas suas ceias, o elemento desadequado que convidavam por obrigação. Não tivera marido nem filhos que a acompanhassem agora, e preferia estar só, com o seu Presépio iluminado a aquecer o coração. No telemóvel podia ver a sucessão de chamadas não atendidas, as mensagens não lidas. Desligou-o de vez.
Lavou a loiça, arrumou a cozinha, sentou-se a ver a televisão desinteressante que dava essa noite. Desistiu, e em vez disso pôs a sua música favorita a tocar. Sentou-se a beber um whisky reconfortante, a relembrar Natais mais quentes que já tivera. A alegria de abrir as prendas quando era miúda, o prazer de oferecer o presente certo quando crescera. Ver a felicidade espelhada nos rostos dos outros.
O calor da meia-noite despertou-a do torpor em que se encontrava. O Menino nascera, mais uma vez, e na realidade era só isso que importava. Levantou-se, serena, foi à gaveta da cómoda buscar o Menino Jesus que estivera lá guardado todo o Advento. Finalmente nascera, já podia ocupar o seu lugar na manjedoura. Deitou-o com carinho e rezou as suas orações em pé, junto ao Presépio. Já estava demasiado velha para se pôr a caminho da Missa do Galo, como noutros tempos. O tempo frio e os ossos velhos não colaboravam com ela.
Abriu o seu único presente, uma caixa dos seus bombons preferidos, que tinha comprado no dia anterior na mercearia. Abriu-a, retirou um que desembrulhou com cuidado e saboreou devagar.
Foi-se deitar na cama ainda fria, pesada de tantos cobertores. Apagou a luz, adormeceu com um sorriso quente nos lábios, e dorme até hoje um sono sem sonhos.