terça-feira, março 21, 2006

História Primaveril - Final

Entretanto ele andara por caminhos novos e velhos, saboreando umas minhocas, falando com aves e outros animais, tomando o pulso à Primavera pela verdura dos rebentos novos dos ramos das velhas árvores. O ar já cheirava a terra morna e polen novo, e sentiu que nesse dia era impossível alguém estar infeliz. Tomou o caminho do riacho, para ver as libélulas novas, as primeiras borboletas, e se tivesse mesmo sorte, ainda lhe podia calhar uma que voasse mais lentamente. Isso é que ia ser cá um manjar de primeira qualidade.
Virou a esquina do terreno, olhou mais para baixo e teria caído de cu no chão, se isso fosse anatomicamente possível a um ouriço. Que criatura dolorosamente bela era a que se banhava nas águas novas do ribeiro? Os picos das costas eriçaram-se de excitação, e quase voou encosta abaixo, parando a meio para manter uma certa dignidade e postura conquistadora. Como era possível nunca a ter visto, nos seus anos de deambulação por aquele terreno acidentado? Que beleza, que perfeita a coloração dos espinhos sólidos e delicados, a penugem que lhe cobria a pele nua tinha um aspecto sedoso e reluzente como nunca vira.
Chegou à beira do riacho de peito enfunado como as velas duma caravela, olhar meloso, e a ensaiar mentalmente as suas melhores frases de sedução. Sabe muito bem que as ouriças são terríveis, não se entregando a qualquer um. Sempre rabugentas, dificilmente se deixam conquistar sem luta. Mas com luz nos olhos doces e um piscar de pestanas irrepreensível, lá foi ele em busca do seu alvo.
Ela ficou surpreendida e assustada por alguém interromper o seu banho, mas não desgostou do aspecto garboso do belo macho que se aproximava. Exalava “bom reprodutor” por todos os espinhos, e até ela que era difícil de contentar ficou bastante impressionada. Mas se ele julgava que ela se rendia por dá cá aquela palha, estava muito enganado. Teria muito que penar. Voltou-lhe as costas decidida, mas com um meneio de ancas que o convidava a continuar a corte.
Ele ganhou coragem e entabulou conversa, banalidades primeiro (“Com que então estamos na Primavera, hein?”) de fazer torcer de desespero qualquer Casanova. Mas com o continuar da conversa foi ganhando confiança, derretendo as defesas dela, eriçando os espinhos ao sol, mostrando a sua admiração.
A primeira noite que passaram juntos foi problemática, ele ficou com um pico espetado na pata traseira, e ela deu um jeito às costas para tentar não o magoar. Mas com o passar do tempo acabaram por se compatibilizar. Duas primaveras passaram já, duas gerações de ouricitos mais povoam aquele bosque, aterrorizando minhocas e borboletas novas. Os besouros, esses, cresceram e multiplicaram-se.