quinta-feira, março 09, 2006

Na Aldeia

Sentou-se no alpendre. Estava frio, e nem o sol que a cobria a conseguia aquecer, o frio vinha de dentro, do gelo do coração, dos pensamentos apertados. Olhava para a foto já gasta, mas não a via. Na realidade não estava ali, no alpendre da casa velha que lhe servia de lar desde que nascera, e que conhecia de cor, no meio daquela aldeia pequena de espírito, que lhe fora cortando as asas à medida que crescera. Estava a milhares de quilómetros de distância, algures em África, numa terra que apenas conhecia de ouvir o pai falar nos seus sonhos de menina.
A mãe morreu quando eram pequenos, e ela ficara com os irmãos a cargo. Alimentara-os, vestira-os, e cuidou dos rebanhos enquanto eles iam para a escola aprender a ler. Tentavam ensinar-lhe as letras quando chegavam a casa, mas ela já estava embrenhada nos remendos, no jantar, nas preocupações do dia seguinte. O pai lavrava as terras dos que tinham partido para Lisboa, a troco duma pequena percentagem dos lucros. Passava pouco tempo em casa, e habituara-se a ver nela a segunda esposa, a mãe de família, o seu pilar. À noite ia para a taberna, junto com os outros homens, e voltava quando todos estavam deitados, para ninguém perceber as lágrimas de vinho que deitava.
Os anos foram passando assim. Aos domingos iam à missa, almoçavam todos juntos, e o pai contava as histórias da África prometida, do eterno calor, animais estranhos e promessas de felicidade. Os irmãos foram crescendo e buscando vidas diferentes. Mais estudos, melhores trabalhos, trocaram o pó da terra pelos fumos das cidades. Ela foi ficando, acompanhando o pai, as garrafas de vinho, as histórias cada vez mais raras e distantes.
Os irmãos nunca aparecem agora. Já não têm raízes na terra que os amamentou, espalharam os ramos por outras veredas. O pai desapareceu no fundo duma garrafa de vinho, e as cabras foram morrendo ou sendo vendidas.
E as tardes passam-se assim, no alpendre, com a garrafa do vinho que abafa o coração, e dá cor às faces, os pensamentos numa terra distante, onde ainda se encontra o pai com o macaco no ombro.