domingo, janeiro 29, 2006

Divagações Familiares

Detestava estas reuniões familiares, com primos e tios afastados, pessoas que não conhecia, gente de quem não se lembrava. Mas às vezes tinha de ser, e lá se via arrastada para o meio de gente sedenta de novidades, de coscuvilhices das vidas alheias, de viver através dos outros. As perguntas eram sempre as mesmas, porque estava sozinha, que sempre tinham sabido que o ex-marido não era flor que se cheirasse, mesmo que há uns anos atrás no dia do casamento lhe tivessem jurado a pés juntos que não podia ter encontrado melhor partido.
Mas enfim, dissera que sim, porque se vira encurralada ao pé dos tios, e não conseguira encontrar nenhuma desculpa plausível que lhe aliviasse o fardo da reunião, e assim lá ia ela ao encontro da sua genética.
Chegou tarde, como sempre, o que tornou tudo mais penoso, e sentiu como deveria ser triste a vida da rainha de Inglaterra de cada vez que tinha de cumprimentar longas filas de pessoas que não escolhera.
Sentaram-na ao pé do velho tio Joaquim, e a sua mulher roliça e com bochechas sempre rosadas, que se iam acentuando à medida que os copos de vinho iam descendo pelas gargantas. Desgraçadamente herdara dela essa característica, que fazia com que gastasse imenso dinheiro em correctores e bases, que acabava sempre por não utilizar, mantendo o seu look campestre.
Nessa noite o tio estava particularmente falador, e não parava de lhe fazer perguntas mais ou menos embaraçosas sobre a sua vida pessoal e familiar, ou, na sua sabedoria de tio, na falta dela.
Mas lá para meio da noite a conversa começou a mudar de rumo, para direcções cada vez mais estranhas.
- Sabes sobrinha, sinto que contigo posso falar mais abertamente, que posso desabafar, abrir-te o meu coração.
Foi por esta altura que olhei desesperadamente em volta, procurando uma tábua de salvação, que parecia não se avizinhar. Acariciei delicadamente o relógio, como quem insinua que está quase na sua hora, mas todos estes sinais foram firmemente ignorados.
- Eu sou um homem especial. Sabes...
E fez-se uma pausa estratégica, na qual ele sorveu um golo de vinho, e que eu imitei, pois achei que mais valia anestesiar a revelação que se poderia seguir.
- I see dead people...
Fiquei sem pinga de sangue, toda eu tremi, da cabeça aos pés. Não fazia a mais pálida ideia que o meu velho tio Joaquim sabia falar inglês. A minha cabeça rodopiava, tentando perceber em que raio de família estava eu inserida afinal, e fiz a pergunta que na altura me pareceu mais óbvia e pertinente:
- Hã?
- Vejo-os, filha. Aos mortos. Olham-me, por trás dos olhos sem vida, os seus corpos inertes e gelados. E acho que por vezes tentam dizer-me algo.
Fiquei mais calma. Este já era um tipo de discurso que me parecia mais típico da minha família disfuncional. E mais uma vez, tentei chegar ao fim da questão com delicadeza:
- Quê?
- Ó Jaquim, deixa a miúda. Sabes bem que ela não se lembra que és o coveiro municipal. – disse a tia, enquanto se virava para mim, para explicar a situação. – Aprendeu esta com o Zezinho, que desde que é advogado, diz que sabe falar a língua dos infernos.
E pronto. Meti mais um copo de tinto carrascão no bucho, e pirei-me dali para fora. Família difícil, a minha.