quinta-feira, outubro 28, 2004

Cem anos depois...

- Está iniciada a audiência. Ora bem, estive nestes cem anos a reler todo o processo da arguida, de modo a poder tomar uma decisão. Mas é claro que tudo vai depender do comportamento da arguida durante o tempo que esteve no Purgatório. Senhor Anjo da Guarda, que tem para nos dizer? E veja se é mais convincente desta vez...
- Senhor, Deus, Clementíssimo e Todo-Poderoso...
- Sim, eu sei que sou tudo isso. Já te avisei que esses métodos não resultam. Tu não me faças perder a minha infinita paciência.
- Altíssimo, observei cuidadosamente a minha cliente durante estes cem anos, e ela demonstrou um comportamento exemplar. Participou nos grupos de Oração, ofereceu-se para cumprir penitências de outros arguidos, e até participou nos trabalhos de limpeza e manutenção do Purgatório.
- Hummm... Estou impressionado, sim Senhor... Parece que um bocadinho de calor tem sempre uma função pedagógica. E o que tem o Diabo de Acusação a dizer a este Tribunal? E não preciso de relembrar que é necessário contenção...
- Mas com mil diabos, ainda nem abri a boca e já me cai tudo em cima?
- Não te enerves, e manda lá os teus mil diabos embora. A rapariga é só uma, não precisa de uma escolta tão grande. Conta lá de tua justiça.
- Bem, a minha visão dos factos é ligeiramente diferente. Após aturada investigação, presente nestes 253 dossiers, que já sei que não vou ler... conclui-se que a arguida fingiu estar doente 438 vezes para fugir às orações da manhã. Subornou os guardas do Purgatório, oferecendo favores sexuais em troca de fatias de salame e outras regalias alimentares. Não preciso relembrar que só nesta acção temos dois pecados capitais, a Luxuria e a Gula, pois não?
- Não, não precisas. Fui eu que os cataloguei e classifiquei, lembras-te?
- Perdão, perdão. Continuando, até mesmo a participação nos trabalhos de limpeza e manutençaõ foi apenas com o intuito de se conseguir infiltrar no sistema de segurança e baixar 20 graus à temperatura da sua cela.
Aconselho então este tribunal a considerar esta moça uma alma perdida, e a mandá-la para os quintos dos infernos, que por acaso é onde eu tenho uma mansão muito jeitosa, e aproveito para aprender aquela do...
Calma, calma, que quem decide sou Eu. Não estão sempre a dizer que eu sou omnipotente e coiso e tal? Bom, mas este caso precisa de uma análise mais cuidada. A arguida segue comigo para o meu castelo nas nuvens, por tempo indeterminado, até à decisão final. Está encerrada a audiência.
-... olha, olha... e não é que Ele lhe passou a mão pelo pêlo? Eu bem me parecia que ela esteve o tempo todo a fazer-Lhe olhinhos. Sempre pensei que a Luxúria ia ser a perdição dela... afinal parece que foi a salvação.
- Anda lá, não penses mais nisso. Vamos mas é beber uma cerveja geladinha que eu estou com uma sede infernal. Ainda havemos de aprender aquela do...
FIM