segunda-feira, dezembro 20, 2004

Feliz Natal

Todos os dias pegava na sua caixa, vazia pela manhã. Não adiantava ir muito cedo, porque nas horas de ponta era impossível andar de transportes. Mas a partir das 10h já havia espaço. Para ele, a sua mulher, igual a ele, e as suas bengalas. Começavam no inicio da linha, um em cada ponta do metro. Cruzavam-se a meio, e até esboçariam um sorriso, mas ambos sabiam que o outro não o veria. Mas sentiam o cheiro um do outro, e isso já os deixava feliz. Até piscariam o olho, mas as pálpebras nunca se tinham descerrado. Ambos nasceram assim, e assim tinham aprendido a viver, a andar e a amar.
“Tenha a bondade de me auxiliar, por favor.”, era a frase repetida até à exaustão. Nunca aprenderam nenhum outro oficio, cego é deficiente, inválido, não serve para trabalhar, o que há-de ser destas crianças, foi cassete que sempre escutaram. E assim se tinham habituado, afinal, se tanta gente lhes disse, deveriam ter razão.
“Esta criança é um peso, que mal fiz eu a Deus para merecer isto? Mais valia se nunca tivesses nascido!”
Não se zangavam, nunca lhes disseram isto por mal. Eram um peso, e sabiam-no. Era principalmente um peso para si próprios.
Mas um dia, há muito tempo atrás, tinham-se cruzado pela primeira vez, algures numa rua da Baixa. E descobriram que cantavam a mesma canção: “Tenha a bondade de me auxiliar, por favor.” Pararam, olharam para o céu, que foi de onde lhes pareceu vir o som. Repetiram as mesmas palavras a medo. Até teriam sorrido, se soubessem como o fazer. Mas deram as mãos, juntaram as cegueiras.
E ainda hoje cantam juntos, algures, no metro. Todos os dias.