segunda-feira, março 21, 2005

Amor à Ciência

“As rãs são animais fascinantes, sabias? Para além de serem extremamente bonitas, como tu aliás, são importantíssimas para o ecossistema, e são fonte de inúmeros estudos de fisiologia. Através do funcionamento dos seus nervos motores podemos descobrir tanto sobre nós próprios. A espécie humana não é tão diferente das outras como se julga.
Sabes como se mata uma rã em laboratório? Utiliza-se um método extremamente eficaz e supostamente indolor. Um método “humano”, se assim desejares defini-lo. Eu costumo chamar-lhe hipocrisia, mas sabes como sou sarcástico. E, sinceramente, o sofrimento das rãs não me diz muito. A Ciência vem em primeiro lugar. São necessários grandes sacrifícios para se fazerem grandes descobertas. As rãs são as mártires do nosso tempo, se assim quiseres, sacrificando-se em prol dum bem maior.
Mas já me perdi em divagações, como sempre. Por isso nunca fui um professor brilhante. Os meus alunos queixavam-se que eu era incapaz de manter um fio condutor no meu raciocínio, e que os baralhava mais do que esclarecia. Cambada de incompetentes mentais, isso sim. Habituados a terem a papinha toda feita, com as suas sebentas de saber já mastigado e digerido, pronto a derramar em pseudotestes, que supostamente avaliam conhecimentos, mas que servem apenas de medida de aferição da capacidade de reter matéria inútil, como um corpo disfuncional retém as águas da urina.
Mas são um bicho interessante e abnegado, as rãs. Bem melhores que os ratos, que se contorcem como loucos, enormes bichos de esgoto, que só morrem à custa de doses massiças dum veneno qualquer. Habituados a viver na podridão, bichos nojentos. As rãs não, elas são as melhores amigas do fisiologista, os cães dos cientistas. Sobrevivem dentro do frigorífico por longos períodos de tempo, baixando o seu metabolismo para não morrerem. Economiza-se em comida e em instalações. Só vantagens, como podes ver.
Mas o que mais me fascina, como te disse anteriormente, é a forma como são mortas em laboratório, uma verdadeira maravilha da ciência. Introduz-se lentamente na zona da nuca, como um ritual religioso, uma agulha fina mas resistente. Pressiona-se até atravessar a pele e restantes tecidos, até atingir a delicada zona do cérebro. Aí chegados, movimentamos a agulha em círculos, até extinguir completamente qualquer actividade cerebral. Uma metodologia simples, eficaz, limpa e sem qualquer tipo de dano para o investigador, sem consequências morais. Os meus alunos queixam-se um pouco ao inicio, têm pruridos, dilemas éticos, mas são rapidamente conquistados pela beleza delicada da operação. Mais do que ciência, o processo torna-se numa verdadeira obra de arte.
O problema é que se torna viciante, queremos cada vez mais, melhor e maior. Quando nos apercebemos, uma simples rã já não chega, deixa de nos satisfazer. E passamos para uma lagartixa, animal um pouco mais complexo, embora ainda bastante em baixo na escala evolutiva. Depois, um dia, acordamos com vontade de experimentar numa avezinha indefesa, num pequenino mamífero, um ratinho, quem sabe?
Sabes,amor? Eu sou um cientista de topo, estou no cimo da escala evolutiva, da cadeia alimentar, os meus desejos têm de ser respeitados, porque um dia farão o mundo andar para a frente. É do resultado dos meus estudos que sairão grandes avanços para a humanidade. Por isso, amor, tu és a peça mais importante deste puzzle. Tu aí quieta, com esses olhos assustados, as extremidades amarradas e o corpo indefeso, vais salvar toda a humanidade, uma Messias dos tempos modernos, cura para o mundo doente.
Tu, meu amor, estás a fazer a dádiva mais bela e justificada de todas,ao doar o corpo para a ciência, ainda que involuntariamente.
E assim, amor, através do meu trabalho, seremos os dois imortais.”