quarta-feira, junho 08, 2005

A Queda

Havia dias em que se sentia assim, poderosa, dona do mundo. Tinha vestido a lingerie certa, que a fazia sentir sexy. A roupa tinha a melhor combinação de cores para abrilhantar o seu tom de pele, a forma perfeita para realçar as suas curvas, todo o conjunto estava harmonioso. Dava passos seguros com as suas botas de salto alto, que lhe acompanhavam a barriga das pernas num desenho delicado. A cada passada, o chão estremecia debaixo dos seus pés.
As cabeças voltavam-se à medida que ela passava, as mulheres com inveja espelhada nos olhos, os homens com um ar de desejo a queimar-lhes as entranhas. Ninguém ficava indiferente ao poder animal que ela emanava naquela manhã, e que via reflectido na sombra negra e esguia que projectava ao sol do meio-dia.
Cruzou uma esquina com o seu passo decidido, de nariz levantado ao alto, não viu o desnível que o chão fazia a seus pés. Torceu o tornozelo delicado, desiquilibrou-se, e nesse momento a sua sombra ergueu-se, imponente, mais alta que uma árvore secular, empunhando uma adaga negra como ela.
Apunhalou-a repetidas vezes, com um sorriso sádico nos olhos sem cor, perfurando as carnes moles e o orgulho duro. Com um golpe final, mais profundo que todos os outros, e coroado com um beijo gélido, abandonou-a deitada no chão, a esvair-se em auto-estima.
Quando finalmente se levantou, depois do que lhe pareceu ter sido uma eternidade, não passava duma baixota sem graça, uma mulher desinteressante e feia, com roupas demasiado provocantes, cores desenquadradas e mal conjugadas, num corpo desenhado por um artista sem talento. Correu desajeitadamente para casa, onde se podia esconder do mundo e redesenhar-se para enfrentar o dia seguinte.