domingo, maio 08, 2005

Animatógrafo

Caminhava sozinha pelas ruas desconhecidas daquela cidade grande. Gostava da sensação de anonimato, de saber que ali ninguém a conhecia ou julgava, que era livre para seguir os seus desejos. Deambulou por ruas estreitas e sujas, com cheiro de urinol público, e sentiu-se excitada com a sensação de perigo iminente. Atrás de qualquer esquina podia esconder-se um ladrão, um raptor, um homem que lhe fizesse mal, que desse pela sua presença.
As prostitutas que amparavam as fachadas dos prédios com o peso dos seus corpos, olhavam-na de lado, desconfiadas e agressivas, territoriais, prontas a defenderem o que tinham conseguido a tanto custo. Ela caminhava com uma pose segura, disfarçando o medo que a preenchia e excitava.
Procurava uma sexshop, daquelas com ar sórdido e passagem contínua de filmes. Não gostava das que estavam na moda agora, cheias de brinquedos inocentes, com um ar jovem e asséptico, com um empregado solícito e pronto a explicar detalhadamente o funcionamento de cada item, como se sexo fosse tão certo e banal como uma ida ao dentista.
Descobriu finalmente a loja certa, cheia de neons e com um animatógrafo no interior. Entrou sorrindo para o empregado de ar untuoso, certamente experiente no uso de cada um dos objectos que recheavam as prateleiras, bem como das putas que emolduravam a porta.
Observou cuidadosamente cada um dos artigos específicos que tinha ido procurar, tocou em todos deslizando a ponta dos dedos, enquanto molhava os lábios com a lingua, numa atitude estudada de fêmea provocadora. Os outros ocupantes da loja, na sua maioria homens de grande barriga e pouco cabelo, passavam as mãos pela braguilha das calças, num convite muito pouco subtil, mas desejável. Queria sentir-se apenas uma fêmea, um animal sexual, cheio de emoção a percorrer-lhe o corpo.
A adrenalina que lhe recheava as veias deixava-a entorpecida. Alugou uma cabina, queria ver uma mulher nua dançar para ela, a rebolar-se como o fazia para todos os homens sebosos que preenchiam o espaço, sem saber que outra mulher a observava, lhe estudava os movimentos, queria absorver a sua vida através dum vidro sujo.
A cabina exalava um cheiro a sexo podre, a transpiração e a viscosidade, e deixou-se embriagar pela tesão do momento. O vidro fosco subiu, e ela pode ver a outra em toda a sua plenitude. O seu ar velho e usado, o modo lânguido como movimentava os quadris, a pose estudada de quem apenas precisa de existir para seduzir. A sua expressão não denunciava o nojo que lhe enchia a alma, perceptível apenas para ela. Isso fê-la sentir-se especial, irmã daquela stripper flácida, como se partilhassem um segredo que não estava acessível a mais ninguém, muito menos a qualquer homem.
Tocou-se, fez-se feliz ao som da música decrépita, deu-se prazer com as mãos que tinham tocado as paredes sujas, enegrecidas de fumo e fluidos.
Saiu sorrindo, lambendo a ponta dos dedos na direção dos homens que a esperavam à saída, vendo o volume que se formava nas suas calças, sentindo-se desejada. Saiu para a rua suja, onde voltou à sua pele de mulher insegura, com medo das sombras que se projectavam nas paredes, receando ser seguida, ou ter sido descoberta nas suas deambulações.
Quando chegou a casa permitiu-se um sono profundo, um torpor sem sonhos, uma calma que o corpo tinha, mas que a alma nunca alcançaria.