segunda-feira, agosto 21, 2006

Intimidades

Lá fora estava frio e chovia abundantemente. Uns raios iluminavam ocasionalmente a manhã cinzenta, e o som cavo dos trovões fazia-lhe tremer os ossos. Ele estava sentado no parapeito da janela, contemplando o caos da rua, sentindo-se agradecido pelo aconchego do seu quarto. A testa pousava docemente no vidro frio da janela, enquanto observava as pessoas pequeninas lá em baixo, lutando com os seus guarda-chuvas e afadigando-se no quotidiano.
Olhou para dentro para se certificar que no seu mundo tudo se mantinha inalterado. Ela ainda dormia calmamente na cama que era dos dois, os cabelos emaranhados trepando pelas duas almofadas como hera numa casa velha. Tinha uma expressão serena, contente, no meio do desalinho dos lençóis, testemunhas do rebuliço nocturno. Os seios elevavam-se ritmicamente, ao som da respiração quente, e as pernas estavam ainda entreabertas, com a confiança de quem se sente segura. No ar pairavam aromas a amêndoa, canela e amor, e a intimidade partilhada era esmagadora.
Apenas havia uma nota discordante. As roupas dela mantinham-se espalhadas no chão do quarto, despidas à pressa na luta dos corpos, marcavam o território que era seu. As dele já lá não estavam. Ele estava impecavelmente vestido, e as malas estavam à porta, prontas para a saída.