domingo, janeiro 23, 2005

Depois da Tempestade

Quando nasci o senhor doutor pegou-me pelos pés e virou-me de cabeça para baixo. Nesse momento eu estendi os braços, chorando desamparada, e Deus segurou-mos. Puxou-me para Si e voou comigo nos Seus braços. Tem-me carregado desde esse dia, envolta num abraço apertado, sobrevoando montes e vales, abismos profundos e tenebrosos.
Mas eu tenho espírito rebelde, e por vezes luto comigo própria, tentando libertar-me. Quero conhecer a paisagem aos meus pés, principalmente os abismos da vida, que me fascinam e atraem. E o Senhor respeita-me, e vai-me pousando suavemente, deixando-me caminhar com o meu próprio pé. E eu sinto-me livre, feliz e sozinha.
Invariavelmente os meus passos levam-me até à beira do precipício, agrada-me espreitar lá para baixo e ver se existe fundo, se é alcançável. Nessas alturas começo a balançar, experimentando os pés, tentando cair. Já não vejo nada, não sinto, apenas uma angústia me preenche a garganta num grito sem voz. E vou sempre forçando, até deixar de distinguir um caminho à minha frente e lanço-me de cabeça no vazio.
Mas nessas alturas Deus, que me tinha mantido segura por um fino fio de cabelo, volta a puxar-me para Si. E abraça-me carinhosamente, abafa os meus soluços, e voa comigo pelos céus.
Um dia irá pousar-me definitivamente, quando a minha viagem chegar ao fim, e eu puder finalmente descansar em terra sólida ou queda eterna.