terça-feira, setembro 26, 2006

Instantaneos

Era tão bonita a dormir, com aquele ar de anjo sonhador. Nem parecia a mesma de durante o dia, carregada de preocupações, a gritar com ele a cada passo que dava. Porque era um desarrumado, porque não sabia controlar o dinheiro e as contas, porque ainda não tinha deixado de fumar, porque nunca ia pôr o lixo na rua. Porque tudo e porque nada.
Mas assim, a dormir, com um ar tão descansado, parecia quase feliz, a menina doce e ingénua com quem tinha casado, e que ele tinha transformado numa eterna mãe.
Fechou os olhos desejando guardar aquele momento no fundo das suas memórias. Gostava de o poder guardar para sempre, que a vida parasse ali como uma fotografia.
Acariciou-lhe os olhos amendoados, devagar para não a despertar, e dar assim azo a mais censuras e recriminações. Desenhou-lhe com a ponta do dedo todos os contornos do rosto, demorou-se na boca que era sua, fonte de dor e de prazer. Ergueu-se no cotovelo para a observar de cima, como rapina estudando a presa. Deu-lhe beijos leves nas faces, viu-a entreabrir os lábios, respondendo às carícias gentis.
Emoldurou-lhe o rosto com as duas mãos, deslizou-as até ao pescoço e apertou-o suavemente, quase como uma carícia. Viu-lhe os olhos abertos passarem da surpresa ao desejo, e daí ao medo, enquanto cerrava mais o círculo em torno dela, e lhe beijava os lábios sedentos de vida.
Sentia os músculos dela tensos debaixo do seu corpo, pouco habituado a violências daquele tipo, e isso excitava-o, devolvia-lhe um sentido de domínio e auto-estima que ela o tinha feito perder. Sentiu-se poderoso e forte, dono dela e do mundo.
Mas enquanto a vida lhe ia fugindo do corpo e ela deixava lentamente de lutar por ar, a sua expressão transformou-se, o seu rosto moldou-se numa gigantesca recriminação, e ficou congelado para sempre assim, na face perpétua da mãe em que se tinha transformado. E ele sentou-se na beira da cama, desolado e indefeso chorou como uma criança sem ninguém para o consolar.