No Fundo do Copo
Por vezes bebia bastante, para anestesiar a mente, libertar o corpo, esquecer um pouco a vida que lhe tinham distribuído e que não a fazia feliz.
De vez em quando partilhava a solidão com outro amante do ritmo, solitário como ela. Dançavam os dois na pista, embalados pela música alta, que penetrava a pele e sossegava o corpo. Beijavam-se, tocavam-se, mas permaneciam isolados, defendidos pelo fundo de um copo sempre cheio.
Numa noite deixou de aguentar. O coração doía-lhe, a alma piscava-lhe de ansiedade, o corpo pedia uma atenção que ela não se podia permitir dar. Nem a sucessão de copos cheios que já lhe tinham passado pela mão, a uma velocidade assustadora, pareciam acalmar a ânsia que a inundava, e a música aos berros já não abafava a voz que gritava dentro da sua cabeça a infelicidade. A dança frenética que costumava ser um bálsamo, era agora dolorosa.
Olhou em volta, sem saber o que fazer. No chão amontoavam-se pedaços de vidro, restos de copos que tinham escorregado de outras mãos, e que dificultavam agora os seus passos. Baixou-se vagarosamente, com movimentos lentos impulsionados pelo álcool, e agarrou o pedaço de vidro mais colorido. Acariciou as palmas das mãos com ele, os pulsos, cada dedo amaciado pela bebida, e pelos inúmeros cremes com que se mimava todas as manhãs. Cortou a carne mole, como se não lhe pertencesse, sentiu o sangue escorrer devagar, quente, e a dor que lhe perfurava os dedos abafava a dor do coração.
E dançou o resto da noite, tingida de vermelho, com a dor que lhe invadia a alma espelhada nas suas mãos, e um sorriso de alienação a coroar-lhe o rosto.